Por Thor Dantas
Foi com surpresa que tomei conhecimento, em matéria jornalística veiculada na imprensa local, da aquisição pela prefeitura de Rio Branco de um produto que responde pela alcunha de “Aedes do bem”, ao exorbitante custo de cerca de 5 milhões de reais, com recursos do Sistema Único de Saúde.
Bocalom sentado em cima do Aedes do Bem/Foto: montagem IA
As suspeitas de superfaturamento levantadas pela matéria, com a aquisição acima dos valores de mercado já seriam motivo suficiente de questionamento, assim como a dispensa de licitação, considerando haver diversos distribuidores e até varejistas que anunciam vender o referido produto hoje na internet.
Mas minha crítica nesse caso não é quanto ao aspecto jurídico-formal da compra que deve ser objeto de apuração pelos órgãos de controle competentes, não por mim. O problema mais grave a meu ver, é ainda de outra ordem e esse é de minha competência: a fragilidade técnico-científica por trás dessa medida.
O produto em questão é um kit com ovos do mosquito Aedes aegypti geneticamente modificados que fazem com que, uma vez cultivados, por causa da mutação que carregam, apenas os machos cheguem a fase adulta. Como é sabido, apenas as fêmeas dos mosquitos picam os humanos, sendo elas, portanto, as responsáveis pela transmissão das diversas arboviroses, como dengue, zika e chikungunya. Os mosquitos geneticamente modificados liberados na natureza, ao se acasalarem com as fêmeas já presentes no ambiente, transmitiriam essa mesma característica aos seus descendentes, diminuindo progressivamente a população de fêmeas no ambiente e assim supostamente contribuindo para o controle da transmissão das doenças.
A ideia parece boa, na teoria. Mas na ciência em geral, e na Medicina em particular, é preciso mais do que boas teorias para justificar uma intervenção. É preciso demonstrar, com evidências experimentais, tanto a eficácia quanto a segurança de qualquer intervenção em saúde que se deseja implantar. E para intervenções em larga escala, dedicadas a populações, seja na saúde publica ou privada, exige-se ainda estudos de custo-efetividade, demonstrando que os resultados são de uma magnitude tal que compensam os recursos dispensados em sua implantação. E o “Aedes do bem” não atende de forma satisfatória a nenhum desses requisitos.
O produto conseguiu demonstrar que há uma redução inicialmente significativa, mas temporária, da população de mosquitos. Após 10 gerações o efeito se perde e a população de fêmeas volta aos patamares originais entre 12 e 18 meses após a soltura dos ovos. O kit precisa ser substituído a cada 28 dias, e o alcance é de duas caixas para cada 5 mil metros quadrados. Façam as contas.
E mesmo a transitoriedade do efeito sobre a população de mosquitos é ainda apenas parte do problema. Indicadores entomológicos são “marcadores substitutos”. Os indicadores que realmente importam, e mais difíceis de serem demonstrados, são os de redução de casos de doença na população, objetivo final da qualquer intervenção. Esses estudos, a empresa fabricante não se ocupou de fazer, tendo deixado essa tarefa para cada comprador de seu produto. Assim é fácil vender…
Quanto à segurança, há muitas perguntas também não respondidas. Estudos iniciais já apontaram para o risco potencial de cruzamento dos genes modificados com os da população selvagem de mosquitos, com consequências imprevisíveis. Outra preocupação é quanto ao contato do mosquito modificado com substâncias que tem o potencial de reverter o efeito protetor da mutação e estão largamente presente no meio ambiente, como certos antibióticos. E há ainda por fim a hipótese de que com a eliminação da população de Aedes aegypti, outras espécies silvestres de Aedes, também capazes de transmitir as doenças, já conhecidas e já identificadas no ambiente urbano, possam ocupar o espaço deixado por seu concorrente.
Nos Estados Unidos o uso do produto é ainda experimental, com autorização para realização de estudos pilotos em apenas dois estados e a liberação dos mosquitos está proibida em áreas situadas a menos de 500 m de possíveis fontes do antibiótico tetraciclina, como estações de tratamento de esgoto, áreas produtoras de frutas e instalações para bovinos, suínos e granjas. Em nossa cidade o experimento será feito em que moldes?
Apesar de comercializado livremente em território nacional, o produto não tem registro definitivo da Anvisa, que definiu que ele deve ser objeto de “regulação sanitária específica” e que “concederá o registro após avaliação de sua segurança e eficácia”. A Agência emitiu um “registro temporário” apenas com intuito de “regularizar a utilização desse mosquito em pesquisas no território nacional que produzam as evidências científicas necessárias sobre sua segurança e eficácia”.
O município de Piracicaba, no interior de SP, pioneiro na implantação piloto da tecnologia, declarou recentemente estar encerrando o projeto por “falta de viabilidade econômica e por não atingir os resultados esperados”. Será que alguém da gestão aqui sabe disso? O Ministério Publico do Piauí recentemente realizou audiência para cobrar explicações sobre o projeto no Estado após denuncias de ausência de estudos de eficiência e custo-efetividade.
O combate às doenças transmitidas pelo Aedes traz desafios científicos e de gestão que não são pequenos. Como em qualquer programa, fazer o básico bem feito, com manejo integrado de estratégias, é a condição mais importante, essencial para o sucesso. A busca por soluções inovadoras é necessária, mas não dispensa as estratégias tradicionais e exige que as inovações sejam acompanhadas de sólido embasamento científico.
A Fiocruz, maior instituição de pesquisa em saúde do País, desenvolve há mais de uma década um projeto com uma nova tecnologia de combate ao Aedes que tem se mostrado extremamente poderosa, sendo suportada por um corpo robusto de evidências científicas de ótima qualidade.
Trata-se de um mosquito infectado com uma bactéria, chamada Wolbachia, encontrada habitualmente em cerca de 60% de todas as diferentes espécies de insetos na natureza. Quando presente no Aedes, essa bactéria impede naturalmente que os vírus da dengue, zika e chikungunya se desenvolvam no mosquito. Os mosquitos infectados pela Wolbachia foram apelidados de “Wolbitos”.
Os estudos com os Wolbitos mostram de forma consistente que sua utilização leva a uma redução, não da população de mosquitos, mas dos casos de doença entre as pessoas. A redução dos casos de dengue é da ordem de 70%. Diferentemente do Aedes do bem, os Wolbitos não são geneticamente modificados, mas simulam uma condição naturalmente encontrada na natureza, que não causa alterações nos sistemas ecológicos, tendo três estudos independentes de avaliação de risco classificados a tecnologia como de “risco insignificante”. Diferentemente também, a população de Wolbitos após uma soltura, ao invés de diminuir, aumenta ao longo das gerações até se tornarem estáveis, demonstrando ser um investimento autossustentável, sem necessidade de liberações repetidas.
A tecnologia dos Wolbitos já foi utilizada em 14 países, tendo beneficiado 11 milhões de pessoas até o momento. Estudos com modelos de custo-efetividade mostram que para cada 1000 habitantes acompanhados por 20 anos, o método dos Wolbitos gera uma diferença de custo médio de US$ 538.233 (R$ 3.014.104, a valores atuais) e evita uma média de 5,6 anos potenciais de vida perdidos.
No Brasil, o Ministério da Saúde adotou a estratégia como prioritária e sua implantação está em franca expansão no País em municípios como Rio de Janeiro, Niterói, Campo Grande, Belo Horizonte, Petrolina, Joinville, Foz do Iguaçu, Londrina, Presidente Prudente, Uberlândia e Natal. O País está em vias de construir a maior fábrica do mundo de Wolbitos, capaz de atender inicialmente 70 milhões de pessoas pelos próximos 10 anos.
Rio Branco deveria estar buscando participar dessa iniciativa, financiada pelo Ministério da Saúde, com perspectiva de resultados concretos e de acompanhamento científico rigoroso, ao invés de gastar milhões de seus poucos e valiosos recursos em um projeto mirabolante suspeito, cercado de dúvidas, questionamentos e incertezas.
Como piada, o “mosquito biônico” só perde para a “vaca mecânica”. Mas a falta de uma gestão séria e comprometida, baseada em faz de conta, não tem graça nenhuma. Quem perde e sofre é a população.
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Thor Dantas, MD, PhD. Médico Infectologista e Hepatologista e professor Associado da Universidade Federal do Acre.